quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

entorpecida

Como um gato, cego, que não reconhece a casa o suficiente para conseguir andar por ela sem tropeçar nos móveis, sem dar de cara com a parede: tudo não passa do escuro. Escuro que bloqueia sua mente, envolvida tão profundamente no silêncio da incerteza que não pode ser interrompida inteiramente pelo barulho dos carros nas ruas que insistem em deixar uma música alta, que deve dizer qualquer coisa que os excite. Há o barulho das motos, buzinas e uma mãe que, sem razão, grita com o filho. Do outro lado da rua há as luzes de natal, que fecho um pouco os olhos na tentativa de vê-las melhor por entre os pequenos vãos do portão enferrujado da garagem: aqui as luzes não têm vez! A água quente do chuveiro que deveria me lavar não é suficiente. Tudo escorre. Tudo escorre pelo meu corpo e as lágrimas salgadas que escorrem pelo meu rosto agora misturam-se com a água quente do banho. Tudo escorre pelo ralo do banheiro, mas nem mil banhos conseguiriam lavar a minha tristeza. E, por mais que esta possa parecer angustiante aos olhos de quem a vê, a tristeza não é necessariamente algo ruim. Ela vem agora acompanhada de uma anestesia de sentidos: nada sinto. Continuo, ainda assim, a idealizar amores, paixões, excitação e por fim, gozo. Tudo escorre, mas eu nada sinto. As lágrimas, enfim, secam sozinhas, eu não tinha motivos quando estas insistiam em cair. Agora estou entorpecida e anestesiada e só escorro dormência. E pelo ralo do banheiro me vi escorrendo também: líquida, anestesiada e entorpecida, numa mistura de lágrimas e água quente do chuveiro, despida, escorri inteiramente, sem forma. Acordo. Não consigo esconder um sorriso contido de quem percebe a peça que lhe foi pregada: minha mente brincou comigo mais uma vez!

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Dance com a sua sombra

Há a diversidade e esta incute também a diferenciação de valores, ideais certos e errados, não tão distintos assim e o extremo de cada um deles.
A confiança vem apenas à luz do dia e de barreiras que te separam do seu verdadeiro ser, alguém que talvez nem você conheça, pois à noite, tudo o que te resta são os pensamentos e os sentires incontáveis vezes disfarçados durante o dia.
A distância não impede os pensamentos, mas vem armada contra a parte dos sentires que não se refere a isso, pois também faz-se necessário o toque, no qual há muita coisa envolvida que talvez, ironicamente, faz-nos chegar a um outro sentir que se difere daquele que só mora nas emoções que nós mesmos criamos no universo da mente.
Cada mente é um universo único e vezes, isolado. O consciente e subconsciente é apenas seu. O cérebro exercitando o racional e o emocional, a dor, a sensação de solidão, a vontade de esperança para você e para estas pessoas que assim como você só se conhecem ou chegam perto disso no escuro e no toque.
Porque eu só sou capaz de me conhecer com o estímulo de emoções, as quais eu devo apenas à você.
E agora o espelho não significa absolutamente nada quando só é capaz de te mostrar o reflexo, este além de não ter nem toque, nem sentires, ainda vai te projetar o que você tanto sonhou, fazê-lo passar ali, na sua cara, do lado inverso e assim como o céu, você jamais poderá tocá-lo. Ver e observar é tudo o que lhe resta enquanto, certamente, criará sentires sobre isso.
Você vai chorar de solidão aí e eu vou chorar de solidão aqui e no final, mesmo com a nossa presença nos sentiremos sós: os universos de cada pensamento jamais se cruzam inteiramente. Esse grande buraco branco iluminado pelo sol que te faz enxergar, também te cega.
Cegue-se e olhe para o lado, há mais órbitas girando e a existência é o peso que todas elas vão carregar, para sempre.
Baby, eu não consigo mais negar os sentimentos e minhas palavras forçadas vêm negando o que meus olhos não conseguem esconder: eu te amo.
Esse lance de amor-livre simplesmente não faz sentido se você está comigo.
Eu ouço a nossa música, ela voltou a tocar insistentemente, como um disco riscado, eu ainda vejo nosso amor espelhado em cada lágrima que chorei da última vez que te neguei.
A razão não me importa quando você me ama. A razão só quer que nos tornemos máquinas e quando o vento me toca, ah! eu não preciso entendê-lo, ele é o mesmo que te toca e isso me basta.
Idealizar um amor só o faz ainda mais distante. Você não é a perfeição, logo eu posso te alcançar. Sou humana como você e o fato de também não prestar só nos faz ainda mais nossos.
Você pode continuar fingindo, afinal, todos estão fingindo e negando o que no escuro fica inevitável: a nossa sempre vontade de se entregar e de morrer de amor. Eu morro. E revivo. Porque quando estou contigo sou toda essa vontade de viver sem saber bem o que é isso.Com você eu sou o amor. Por ele tenho morrido todos os dias e isso é o que me faz viver. Que morramos juntos e dessa vez, as luzes estarão acesas.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Os sorrisos das fotografias nos porta-retratos na sala têm me cansado, enferrujados e petrificados demais para trazerem consigo qualquer brilho no olhar senão o do flash da câmera. Porque não é tão fácil saber se as curvas do sorriso é mero mecanismo enquanto a moldura e cenário da foto são, por vezes, tão bonitos. A flor vermelha, de plástico, mergulhada na água, como enfeite apenas, está há cerca de seis anos em cima da mesinha da sala, flutuando e debochando sua imortalidade, lança-me um sorriso sarcástico, ela não irá morrer. Cada móvel e cada metro das paredes brancas mal pintadas dessa casa parecem saber o quanto meus pensamentos têm se combatido em minha mente, numa até então contradição com meus atos. A televisão, desligada, eu já venci.O relógio na parede do meu quarto e seu TIC-TAC diário martela em minha cabeça incansavelmente. TIC-TAC. A brevidade dos olhares fazem com que uma piscada de olho seja tempo demais a ser perdido. Nada é certo e eu insisto em duvidar das grandes verdades do mundo, visto que estas só me trazem novas duvidas. Quero andar na beira de um precipício, olhar para baixo e no meio do meu delírio gritar para a vida indagando o que ela quer de mim, meu grito ecoará me devolvendo a pergunta, eu sei. Eu realmente não posso esperar uma resposta satisfatória quando nenhuma pode ser capaz de me fazer parar de correr, errar, ter fome e me satisfazer.A vida me traga lentamente se eu não a tragar primeiro, então eu solto sua fumaça aos quatro cantos: me sinto viva, posso sentir, não sou o porta-retrato da velha fotografia ou o enfeite na mesa da sala. Vivo, e porque vivo meu sorriso é verdadeiro.TIC-TAC.Não tenho tempo a perder. Eu vivo.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Passaram-se cinco estações desde o outono em que te vi indo embora e desde então passo as estações tentando, frustradamente, encontrar alguém que me faça despertar a pessoa que eu era quando estava ao seu lado.
Passei o inverno fugindo da chuva, enquanto sei que escolheríamos sempre o caminho mais longo ainda que estivesse chovendo.Minha blusa colaria em minha pele, desenhando os meus traços, minhas mãos frias tremeriam e meus dentes se bateriam uns nos outros. Você riria enquanto me abraçava, me apertando com força, e por fim, calaria meu frio num beijo longo.
Sinto que a parte que eu mais gostava de mim adormeceu naquela tarde em que te vi com os olhos vermelhos,o adeus no coração, disparado, a me abraçar pela última vez. Ainda sou capaz de sentir o calor do nosso último beijo, a última canção dedilhada no violão e nossa música tocando no rádio, o dia todo. Se eu soubesse, eu te morderia com força, mais uma vez, e depois, quase arrependida, vendo minhas marcas na sua pele, iria beijá-las tentando amenizar sua dor.
Vou me mudar dessa cidade cujo asfalto mantem impregnado a sujeira de cada palavra que eu não te disse e de todas as nossas promessas vãs, que é pra ver se me esqueço da gente, naquela grama, vendo e rindo dos desenhos nas nuvens.
É difícil não me lembrar quando quase posso ver a marca das suas mordidas ainda em minha pele, sentir o cheiro do seu cigarro em minhas roupas e seu gosto em mim. Se faço o mesmo caminho que fazíamos todos os dias e se todos os casais que vejo na rua me lembram a gente.
Passaram-se cinco estações e desde então, gosto menos de mim.

sábado, 24 de março de 2012

doce acidez

Você me pediu um poema, mas querida, eu não consigo rimar ou ver qualquer poema que possa ser mais bonito que a sua forma de arder. Conheço a sua acidez, que traz consigo uma vontade e gritos nítidos pedindo para ser doçura. Doçura da qual eu provo todas as noites quando passeamos - quase sempre a passos rápidos, é verdade- de mãos dadas pela faculdade. No caminho entre a nossa sala e o bar há sempre um encaixe tão ritmado entre você e eu que chego vezes a pensar que somos a mesma. Sei que você vai me contar do seu fim de semana agitado e depois das suas angustias, enquanto aperta a minha mão. E depois, ardendo, vai sair correndo e gritando pelos corredores daquela faculdade e voltar agitada procurando me morder para que eu tenha a marca dos seus dentes em minha pele por pelo menos uns dias, e ah! como me lateja tudo isto! Me lateja saber que, de alguma forma, eu preciso da sua loucura para reacender a minha, nas horas em que, teimosa, esta insiste em ser lucidez. Preciso de você e da sua acidez quando não tenta disfarçar a raiva que sentes e que tanto lhe ferve os lábios quando me fala dele, que já foi teu. Ah, como preciso da sua doçura que salta quando cansa-se de se esconder no fundo do copo quase transbordado de acidez. Preciso de você porque você é um misto de acidez, doçura e loucura gritante. É ardência e toda vez que volto para casa cansada e desgostosa, me deito e me lembro de você, eu inevitavelmente me lembro: 'não posso me esquecer de viver' e a partir daí, bem, a partir daí eu vivo, ardo e chego a delirar: viver tem um gosto e tanto!

segunda-feira, 19 de março de 2012

não haverá ninguém para aplaudir

Vendo minha vida passar sob meus olhos espelhada no vidro molhado pela chuva, é inconstância que escorre, é liberdade, amor, pois o canário preso na gaiola do quintal não quer cantar mais. Cansou de assistir tudo pela grade. Pego na tua mão, te acaricio e te dou afeto, mas por céus, não insista para que eu te peça para ser apenas meu se te quero assim, livre, como o vento que me desata os cabelos. Voe por aí e distribua seus beijos entre elas e depois, saciado, deite-se com eles. Não posso e não quero te privar do desejo de outro corpo que não seja o meu e eu te peço, deseje, arda e não seque, por favor, não seque. Eu estarei lá, sentada em algum canto da cidade ou no alto da escadaria vendo a mata ser invadida pelas construções, estarei sedenta de fome e sede, procurando, como você bem sabe, uma vida simples e pés descalços. Não, eu não cogito a ideia de entender a cidade, mas preciso fazer parte dela, observá-la não é o bastante e eu me recuso a ser plateia quando simplesmente posso fazer parte do elenco e interagir com ele. Se você não repara nos grafites dos muros da cidade, na lua ou foge da chuva toda vez que ela insiste em cair, eu estarei chovendo sobre você, tendo em vista que faço isso todos os dias quando cansada, encosto o meu rosto na janela dos ônibus. Eu quero estar no meio do povo, conversar com o mendigo da praça, com a trans da esquina e com o bêbado largado no chão. Não penso em entender a cidade, como te disse, mas as misérias realmente não te gritam nada? Há tanta vida escorrendo lá fora, querido. Escorrendo sob meus olhos e eu me recuso a ser plateia, quando sei, que cedo ou tarde a cortina do teatro vai se fechar, as luzes vão se apagar e vão anunciar, sem piedade alguma, o final da peça.

segunda-feira, 12 de março de 2012

desculpe, Mari(n)a, morena, mas eu tô de mal

Atravessou o país
num ônibus
só você sabe o que é ter pavor de avião
de nuvens
e de tempestades

está chovendo aqui, Maria
trovejando forte
e eu insisto em te procurar
com medo
nos cantos da casa

na cozinha
ainda tem nós duas discutindo religião. tem cheiro de andu e de carinho.
na sala
ainda tem você a tarde toda esparramada no sofá, assistindo novelas e eu, Almodóvar
no quarto
tem Marina Morena, que a Calcanhotto insiste em cantar

você em casa
eu na rua

Maria, se você passa a vida toda assistindo o mundo pela janela da sala
não faz parte dele
apenas observa

me observa chegar às três da madrugada
com cheiro de cigarro
e insiste em não aceitar os meus convites para dar uma volta na quadra

você é igreja, novelas e saias longas
sou loucura, nudez e cigarros,

mas na bagunça do meu quarto ainda tem você
sentada ao meu lado, cantando Marina Morena
eu sempre erro a letra toda
distraída demais olhando você cantar e se remexer na cadeira
no ritmo da música

Maria, está tudo intacto aqui
só meu quarto
que anda mais branco
mais monótono
meu violão que insiste em manter-se ora desafinado, ora mudo
o lencinho branco que você esqueceu
continua em cima da cama que você dormia
fiz questão de não arrumar
o travesseiro ainda tem a marca da sua cabeça

se eu insisto em me referir a você no presente, Maria
se agora meus óculos embaçam de lágrimas
as suas já secaram
você não respira mais
e eu continuo aqui
respirando cada molécula da sua alma
nos cantos da casa.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Apaixonei-me por ela a quem eu conheço apenas a escrita. Seu corpo gritava poesia e amei-a até as últimas palavras cravadas em cada pedaço do seu corpo nu.

domingo, 4 de março de 2012

vem
me aperta num abraço até que eu quase sufoque,
já que essa saudade tanto tem me sufocado todos esses dias
e coloca teu peito perto do meu
para que sentindo a batida do teu coração eu tenha a certeza de que realmente vivemos
vem e sussurra no meu ouvido dizendo que me ama,
pois meu coração tem gritado a cada batida esta mesma frase

eu ando tão perdida por aqui
há toda essa inconstância sobre o tudo e o nada
ambos martelando
sempre
em direções contrárias
ou não

sigo me sentindo menos humana
e vendo a vida da gente não se encontrar
e a vida de gente, como a gente
a morrer serena no pasto
que é o mundo
habitado por nós
animais

é verdade
o céu é apenas céu e eu não vejo mais desenhos nas nuvens
como costumávamos fazer

vem e vem logo,
porque disto tudo a única certeza que tenho é a de que sinto
sinto cada vez mais
e eu realmente sinto muito por isto.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

cinza

Hoje é seu aniversário e está tudo tão cinza aqui, meu bem. A república está vazia e eu nunca mais ouvi o ronco da sua moto. Eu nunca te amei, você sabe. Mas eu realmente sinto falta do nosso conhaque ao pé da cama e dos nossos cigarros de palha. Nossas corridas na chuva e de esfregar as suas costas durante o banho. Nós dois, na cama. Eu chorando meus amores perdidos e você, os seus. Minha cólera, na sua, a sua, na minha. E ao final da noite, já bêbados demais, e já tendo toda a tristeza de amores que se vão, a gente se deitava, abraçados.
Na manhã seguinte, você e eu sabíamos o que nos restaria, sempre: o cheiro do perfume nas roupas, misturado com o de cigarro e então, nos tornaríamos, mais uma vez, as cinzas esquecidas no cinzeiro velho em cima da escrivaninha do quarto: o vento forte bate um dia, as cinzas se vão, mas ambos sabemos; ah, como a brasa daquele cigarro nos queimou e envolveu um dia! Me desculpe não te ligar, não responder suas mensagens, eu nunca tenho créditos, você sabe. Estou fumando o cigarro de palha que você me deu há tanto tempo atrás - você sabia que eu o guardaria- e bebendo conhaque, dessa vez, sozinha.Cansei desse lance todo de sermos a cólera um do outro: minha cólera sou eu.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Sentia-se como uma plantinha murcha, guardada para recordar.
Num movimento não-contido
distorcido
as mãos
desassossegadas
passeiam
o coração
ligeiro
bate num ritmo sincero
nas mãos
o suor
os pés
entrelaçados
no chão
as roupas
cama
desarrumada
lençóis
caídos
no corpo
a nudez
eu
você
um no outro
encaixe
entrega

Na escuridão do quarto eu me perco
não me acho mais
você não mora mais apenas em você:
tem um tanto enorme teu, aqui.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Dos relatos de um tirano

O sofá que você senta, fui eu quem comprei. A casa em que mora, fui em quem construiu. Até mesmo esses roxos no seu corpo fiz questão de marcar com a surra que te dei antes de ontem e ontem, que é pra ver se você se lembra de mim ao olhá-los.
Eu confesso: te segui com o carro vários dias quando desconfiei que você pudesse estar tendo algum relacionamento com aquele cara.
Faço questão que você leia essas linhas no escuro, afinal, sou eu quem paga a conta de luz. Pago a casa em que mora, a comida que engole e até mesmo o teto em que, nesse instante, choras indagando o porquê de tudo isso.
Sua mãe moldei quase completamente: é muito fácil completar algo ainda rascunhado, você sabe.
Não sou tirano, e se tranco as portas e levo as chaves quando saio é para proteger-te do mundo.
Você está sob o meu teto, sob o meu controle.
Não te disse? Comprei a tua liberdade a fim de que não a tenha e as chaves, a fim de que não saia de casa, para que assim fique perto de mim, para sempre, ainda que só existindo.

"São tempos difíceis para os sonhadores"

Vivemos menos
sonhamos mais
e na ânsia de realizar tantos sonhos
morremos cedo

arranco um pelo ou outro com a pinça a fim de sentir dor e assim ter a certeza de que ainda existo
meus remédios acabaram e eu não tenho dinheiro para comprar outro genérico
tenho escrito coisas tão assustadoramente verdadeiras - como a própria verdade o é - que por vezes nem mesmo releio-as

a insustentável leveza do ser
a insustentável leveza dos sonhos
a insustentável leveza da existência

dura, árdua, labuta diária, traga-me a tragos lentos

sento todo dia na beira do lago da cidade
lá? a Calcanhotto e a Legião, o cheiro da maconha ainda no ar, os quiosques vazios, as árvores agitadas, a água já inquieta, um bêbado já desacordado na grama
alguns pedem a latinha da minha cerveja para recolher e depois vender a fim de ter algum trocado para o pão da manhã seguinte
lá no Pinheirinho pessoas passam a não ter mais moradia
eu costumava residir em mim

"Some of these days you'll miss me, honey
Some of these days..."

esses são dias desleais.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Trancava tudo. O telefone. As portas. O banheiro. Havia uma bolsa fechada com doces trancados e as chaves que davam acesso ao portão da saída tinham sido levadas por ele.
Não havia para onde eu ir. Nunca houvera.
Mas na manhã, nada disso parecia me atingir.
Eu tinha meus livros, meus discos, meu velho violão e um jeito estranho de desenhar.Gostava de deitar em minha cama com as luzes apagadas enquanto sentia cada emoção sendo emitida nas músicas que ouvia.
Dezoito horas. DEZOITO HORAS!
Dei-me conta de que faltava apenas um minuto para às seis da tarde, quando era chegada a hora sagrada do dia em que me visitava a tristeza.
Era como se meu corpo,cabelo, braço, dedos já trêmulos, as paredes do meu quarto e cada cômodo soubessem que àquela hora uma tristeza desesperadora me abateria.
O ponteiro bateu dezoito horas.
Ouvi o ronco do carro. Ele chegara.
Minha música silenciara e sem dar-me conta deixei cair o lápis que antes segurava.
Ele entrou.
Tentei pensar que aquela hora passaria, que assim como o relógio cruel avisava às dezoito horas a chegada dele, seus ponteiros também seriam bondosos o bastante e anunciariam, dentro de algumas horas, o dia posterior. Onde ele estaria longe. Longe de mim, no trabalho, e eu provaria , como todos os dias, aquela falsa sensação de ser livre.
Mas agora dera a hora. As chaves que ele carregava - e que abriam quase, por assim dizer, cada canto da casa- estavam sendo manuseadas, devagar.
Eu podia ouvir o barulho de chave rodando fechadura adentro. Abrindo tudo. Me fechando. Me lembrando que a todas essas horas da manhã eu estivera sozinha em casa, com tudo trancado para que eu não tivesse acesso.
O barulho das chaves se batendo, uma a outra, parecia agora latejar dentro da minha cabeça. Lembrei-me, de súbito, que eu não conhecera a liberdade. Dentro. Fora de casa. Não possuía liberdade. Estava presa. Não cometera nenhum crime e, ainda assim, estava presa. Estava presa à essa existência mórbida, e de certa forma, não mais abstrata. Dei-me conta de que assim como ele, eu também existia.
Tomei um Dramin a fim de ter sono.
Me deitei, fechei rapidamente os olhos e na esperança de que as horas que sucederiam a manhã não demorassem a chegar, esperei o sono.
Não fiqueis triste, bem-querer
há flores desabrochando docemente nesse instante
ali no jardim de casa mesmo.
Pegue na minha mão levemente e venha comigo vê-las
te prometo a de lótus, tua favorita
guardo o perfume dela no meu pensamento
e tento exalar quando estiveres comigo

o perfume dela, tem o cheiro suave das tuas roupas
que reprovando qualquer amaciante desses das lojas
escolhe o cheiro natural das flores a impregnar-se
de alguma forma
em todas as peças que vestem-te

a notícia do jornal é triste
eu sei
jurei por mil vezes não deixá-la desanimar-me
há flores murchando a toda hora
mas agora
concentremo-nos na que desabrocha, sozinha
no jardim de casa
enquanto todos da casa
ocupados demais com afazeres diários
não a percebem

vem comigo
vamos contemplar a beleza
notória
ou invisível

da vida
da natureza
do ser e de ser
finalmente duas almas.
por onde andarás nessa noite de lua pálida e estrelas pouco visíveis?
por onde passeará a passos lentos o teu pensamento?
será que ele vaga por aquela noite monótona de domingo,
quando sentamos embriagadas pelo tédio somente para contemplar-nos?
estarás a essa hora
a passear pelo meu corpo
com o teu pensamento?

Dou um trago.

Trago demoradamente o cheiro do teu cabelo,
preto,
caído distraidamente nos teus ombros,
enquanto admiro a leveza com que eles passeiam ao vento

compro-te uma bebida,
pode ser a cerveja gelada do rapaz da esquina mesmo
contemplo a forma com que bebes a goles lentos
a minha cerveja já acabou

o nosso amor segue
silencioso
prefere o toque às palavras


prefiro você
matéria-viva
sacrifício doce
doença de minha alma

jogo fora a bituca do cigarro

aqui tudo continua intacto
decido dormir
não quero mais esses pensamentos


quero construir novas lembranças
meu amor

domingo, 1 de janeiro de 2012

Eu passei longos trinta minutos olhando para sua face enquanto ela, com a boca entreaberta e os olhos pequenos, mas cheios de amor, contemplavam a habilidade do menino ao folhear as páginas de um álbum antigo de fotografia, enquanto a criança tentava adivinhar quem seriam aquelas figuras tão distantes e irreais, das fotos pregadas no álbum.
Fechei, quase mecanicamente o Nabokov que lia, e tentei decifrar seu olhar maternal. Senti o reflexo do amor que seus olhos lançavam insaciavelmente à criança e tentei imaginá-los refletindo-o a mim.
Porque era eu a criança das fotografias estampadas no velho álbum, que hoje crescida, tentava incansavelmente relembrar qualquer mínimo momento da minha vida, no qual ela tivesse lançado a mim aquele mesmo olhar que agora lançava à criança.
Sim, eu era a criança da fotografia, mas era além de tudo, real e vasculhava agora detalhadamente meu passado na busca por qualquer sorriso, palavra de amor, ou abraço e outros carinhos que ela pudesse ter me lançado no passado, talvez quando eu tivesse a idade da criança (quem sabe?) como a via refletindo nos seus olhos, para a criança.
Não achei nenhuma memória a que creditasse esses carinhos, achei antes, memórias que por longos dezoito anos tentei afastar. Eu só havia visto o rancor nas chibatadas que levava, quase semanalmente e agora, eu descobrira em seus olhos o amor, ainda que não lançado para mim. Agora eu sabia. Eu via. Eu sorria. Eu chorava. Ela possuía amor. Ela estava, naquele instante, cheia de amor. E eu a olhava...