quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Tinha como meta do dia o parar de pensar por o máximo de tempo possível: assim eu dispensaria qualquer inquietação do meu ser. Seria uma conquista. Logo eu, cujos pensamentos sempre me engoliam e na calada da noite, e no pico da confusão, deixava de ser uma pessoa e passava a me reduzir apenas a eles. Minha cama fazia-se barco em noite nebulosa. O vento forte movia-me sem direção a um porto inexistente. Era com aflição que eu tentava comer o meu medo e olhar para a água do mar. Água forte, agitada, água imperdoável. Água que me carregava para onde bem entendia. Navegar no desconhecido sempre foi minha fascinação. Fascinação que me levara a afundar tantas vezes. Ah! Tantas tinham sido as vezes em que me sufoquei mantendo o corpo preso no fundo das coisas: era um caminho sem volta. Meu mar tempestuoso e indecifrável eram seus olhos e eu suava frio. Mas iria meditar. Não pensaria em nada. Apenas seria. Leve como a brisa que passeia sobre os meus cabelos nos dias azuis, eu apenas seria e sentiria. Sentiria o nada, que é tão mais forte e completo, tão mais real que eu. Passar o dia sem pensar foi, sem dúvida, a ilusão mais doce que já tive. Ao meditar, me vi caindo na tentação inevitável dos pensamentos. O silêncio foi o precipício que me tentou a conhecer o que de mais obscuro trazia. Perguntei-lhe, aflita: só ouvi meu eco como resposta. O eco transpassou meu corpo, gélido. Transpassou, vagarosamente, minhas mãos e minhas pernas - já sem sustentação - e, ainda não conseguindo a anestesia que tantas vezes me tomara e que ( por que não? ) me salvara, foi que me tornei apenas aquele eco. Eu era o precipício de mim mesma: adentrar meu núcleo me seria possível?

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Você está dentro de mim. É como uma parte que em mim adormecia, esperando, serena, a sua chegada. Se o invólucro muda, trago a certeza de que és também essência minha e essa, por ser intrínseca a mim, carregarei por todo o meu existir. És o desconhecido de mim mesma. Parte que tanto amo de mim! Seus olhos são mar que navego sem pressa e sem destino, numa viagem que percorre minha alma. É a água do mar que me vejo refletida e que me mostra mais de mim do que o que eu mesma sei, por vezes me assusto. Seu azul me contagia porque o vejo no céu, no mar e na chuva. O vejo nas coisas indecifráveis, apenas sentidas. Vou dormir e acordo todos os dias olhando para o retrato feito pela sua mão e pela sua alma, que é pra me dar força pra seguir em mais um dia: os olhos fechados, são para não ver e assim, não pensar sobre as coisas que podemos tocar. Os olhos fechados querem apenas sentir e é então que a nudez da alma se faz. Desnudo minha alma e entrego-a inteira: tome-a, que às vezes não a posso suportar apenas em mim! Você me fez observar o mundo e, falar menos. Seu silêncio me diz tanta coisa! Quero ver seu filme favorito. Ler, como quem lê o núcleo da vida, seu livro favorito: suas canções favoritas me fazem chorar. Trazem à superfície meus sentimentos mais profundos, tantas vezes massacrados pela labuta diária. Não, tudo o que te escrevo não traduz o que sinto como eu queria que traduzisse: as palavras nos traem, mas eu insisto em despejá-las, ainda assim, como marca do que vem me agitando tanto. É essa vontade de se dar, que tem me feito gostar mais de mim. É o violino, tocado pelo Joshua me machucando, para depois, me curar. Ouço o violino e sinto seus sentimentos, posso sentir a vibração de cada nota a sair pelos seus traços em forma de desenhos. É minha alma agradecendo por ter te encontrado e assim, me encontrado um pouco mais. É minha alma exalada na vida que te salta, exalada no que sua boca cala, mas teus olhos não. É vida sendo exalada em você e nas estrelas que hoje, me brilham mais.

Você me veio leve como a brisa, que distraída,dança com as folhas, dança com meus cabelos e com meu coração. Seus olhos escuros, me fazem querer tão mais as coisas que não vejo - devido a escuridão do meu pensamento -, mas que sinto. Sem uma palavra me colocou no colo, e foi também sem nenhuma palavra que me vi entregue ao doce do desconhecido.
Seu sorriso me desperta sentimentos bons, dos quais nem sei dar nome. Me lembro de quando te vi cantando: sua alma entregando-se a cada sustenido e bemol. Te vi com o olhar fixo no violão. A alma fixa na canção e então você se infiltrou a ponto de se tornar a própria música que ouvi, sublime, naquela madrugada. Me tomou no colo como quem carrega qualquer coisa de muito preciosa, com aquele tipo de carinho que nos deixa sem reação, que só o abraço forte e cafunés conseguem transmitir, juntamente com nossos olhos escuros. Nossos olhos são escuros como os sentimentos que não vemos, mas sentimos tão forte como só o que não pode ser visto e tocado pode ser. Quando te li nos olhos a tristeza: senti-a em mim, a tomar cada membro meu. Ah, como eu queria roubar-te a tristeza com a força de um abraço! Te abraço forte, que é pra sentir seu coração batendo, te sentir sendo, te sentir viva. Te beijo o olho, mas borro-o com meu batom vermelho - o mesmo que se impregna na ponta de todos os meus cigarros e que você, já lê tão bem. Estou fumando um cigarro por você: a fumaça envolve-me de sentimentos bons e te desenha no ar. Você é o ar. É coisa que respiramos, que é parte de nós. É leve e sentimos a nos embriagar diariamente do que não tem explicação. Seu corpo é poesia ambulante, que não pesa, nem dá forma: carrega-se com a leveza do que é livre. É desenho na nuvem. Você é leve como a pluma que agora pousa em mim. É leve como a flor que desabrocha, sem pressa, no meu quintal. É a leveza da chuva que purifica e renova e que tanto gosto de sentir o cheirinho quando cai na terra, lavando tudo. Se leveza tivesse um nome, seria o seu.
Você me veio leve como a brisa, que distraída, dança com as folhas, dança com meus cabelos e com meu coração e que hoje, já não me deixa traduzir o que é solidão.

( era noite de estrelas lucidas: liam-se amor.)

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Sentada ao seu lado na van, enquanto o Caetano canta, as nuvens passeiam onde navego e sua presença faz-se tão completa que te sinto dentro de mim, não me dou conta de que és outro ser. Não me dou conta de que tens suas certezas tão imutáveis refletidas no seu olhar gélido, que tantas vezes me congela. Você traz um olhar triste que me conta muitas histórias. Que me traz o perfume e espinhos, mas nunca a rosa. Guardo as cinzas da rosa despetalada pelo tempo no meio daquele livro do Drummond e te falo que até mesmo o excesso de luz cega.Eu me infiltro entre as nuvens e navego no desconhecido azul do céu de pensamentos. Joga sua essência nas minhas entranhas! Meu coração comprime-se ao te ler os gestos. Solta o grito, não posso mais suportar a voz abafada que cala seus sonhos e esperanças! Minha esperança é barco pesado demais, que me conduz ao dilúvio das coisas concretizadas apenas na minha imaginação - essa menina, bruta, que me chicoteia tantas vezes e que me sujeita a seu jogo sujo. Jogo delicado que não posso tocar, nem ver, mas que é tão maior que eu por não ter forma definida. Não tem limitações. 259 km hão de nos separar um dia, por enquanto, são 259 anos-luz que nos distanciam. O sol tocando minha pele traz-me a mensagem de que estou viva e aquece meus sentimentos. Em dias como esse, olho com tanta angústia para o céu que posso sentir as nuvens encobrindo-me em sua imensidão. Toma formas que dissolvem-se no azul dos meus pensamentos. Quando choro, posso sentir: as nuvens navegam até mim, o azul dá lugar ao cinza. Tento voltar à superfície e respirar, mas elas passam por minhas entranhas e já não posso tocá-las. Nuvens passeando por cada pedaço de mim. Vão mudando-se em formas diversas que se chocam com as verdades que até então eu trazia. E é então que chove. A chuva é o sangue que percorre minhas veias em direção ao meu coração. Vai lavá-lo para que este não siga sendo tão seco e oco - por vezes, foi tão oco que eu podia ouvir suas falas a ecoarem pelas paredes do meu corpo, que são minha forma. Sinto que nesses dias em que as nuvens choram, transcendo as formas limitadas do meu corpo, como se permeáveis elas fossem e, assim como as nuvens, tomo outras formas - que se parecem muito com os desenhos, que cada um vê de um jeito a se formar nas nuvens. Em qual forma você vê minha alma? Entendo que ela é como os desenhos nas nuvens: onde eu enxergava animais estranhos, meu amor enxergava um sorvete-nuvem e, em alguns minutos, nenhum dos desenhos encontravam-se no céu. Dissipara-se para tomar outra forma, pois aquela não mais lhe cabia. Aquela forma quer ser livre. A forma é minha alma na forma de nuvens, formas mutáveis e insistentemente livres, que dão agora lugar ao sol.

sábado, 23 de novembro de 2013

Tu beijas minha boca, borra meu batom vermelho e morde meus lábios demoradamente, mas não vê a poesia que trago entre eles e que de noite me engole. Tu deixas seu cheiro no meu travesseiro e quando sais, deixa um pouco do seu perfume a embriagar o quarto. Na cama em que deitamos, você vem e volta. Meus pensamentos ficam, você não. Meu olho direito você beija três vezes seguidas, mas ignora minha visão poética das coisas. Você reclama do vento e eu o vejo a dançar com as folhas das árvores e, cabelo ao vento, danço junto: transo com o vento sempre. Minha tv é céu, sobre a minha cabeça as estrelas e a lua como única luz. A cidade nos atrapalha demais escondendo as estrelas e dando lugar apenas aos aviões. Você se incomoda por eu te olhar demoradamente. Fica sem jeito, pede pra eu desviar meu olhar. Suas pupilas: inquietas. Te explico que preciso dos teus olhos pra ter-te por inteira e peço-te para que não use óculos escuro, meu amor. Te imploro que não uses. Quero olhar para seus olhos e ver-te sendo, assim como me vejo ser. A maioria das pessoas são sem se dar conta disso. Você levemente existe, enquanto eu, vejo minha existência a pesar toneladas de angústia por sobre você. Ela me massacra, mas carrego-a com força para que não te doa como dói até então em mim. Você reclama do meu cigarro, mas não repara na marca de batom vermelho que deixo, distraidamente, na ponta de todos eles. Das minhas brisas entende apenas o riso, e o que mais importa? Rimos então. Liga para me dizer que está ouvindo nossa música, mas não a reconheces quando é da minha boca que a voz penetra o ar e enche o quarto e minha alma de bemóis e sustenidos. Mas você se arrepia. Eu sinto que sentes e isso me basta: que mesmo não entendendo, sinta. Afinal, talvez seja a sua leveza que vai me salvar dessa morte diária da existência, dessa forma líquida que tomo como minha tantas vezes. Vai me salvar das vezes em que escorrego inteira pelo ralo do banheiro. Me salva do entendimento das coisas! Quero apenas sentir! E que a loucura da falta de sentido, essa que move a humanidade, não nos abandone. Felizes os que sentem a loucura acima de qualquer coisa e eu, mesmo sendo repreendida por ti, continuo a te olhar nos olhos. Olhos de jabuticaba. Continuo a mergulhar no infinito do que tua boca cala. A nossa música continua, o inverno em mim não.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Você não sabe o que é tatear no escuro depois de ver as cores sumirem, procurando qualquer objeto divino que possa colocar fim a todos os males decorrentes do cativeiro de sua alma, cujos cadeados enferrujados são a falta de liberdade - tiram-te além da liberdade de vida, a de morte - , vigiam-te vinte e quatro horas por dia a fim de rir sarcasticamente da tortura que é manter-te ainda existente. As luzes: mantém-nas acesas dia e noite para que perca a noção de tempo (este não existe mais) . Você dorme, mas a dor não passa e clama por sonos cada vez maiores.Arrancam de dentro de sua bile sorrisos forçados que saem como vômitos. Há tanto tempo sem ver teu rosto que já não se lembra de quem tu és, mas fazem a tua imagem formulada nos gritos incessantes que vêm do porão escuro das palavras laminadas que te dilaceram. O choro, ao nascimento, anunciava o que viria, mas insistiram ainda assim em te trazer a esse calabouço chamado realidade. Ah, como eu queria voltar ao útero! De bruços me deito na água, imaginando o dia em que a cortina gloriosamente se abaixará e anunciarão então o final do espetáculo. Silêncio. Ninguém aplaudirá.

(e a liberdade estampada nos olhos cinzas do morto)

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Cheirar, tremer, gozar a vida na forma de amor dos rebeldes, nas diversas formas de amor, que nos dilaceram quando longe, que nos arrancam grandes pedaços quando distantes. Ver a
cidade e cada canto escuro a pulsar frustração em não poder sentir junto com você o cheiro da chuva que nos lava e agora, contemplar a lua pálida por minha saudade. Ao seu lado emudecer e gritar tudo com meu olhar que você já decifra tão bem. Sabe do meu romantismo sem palavras e do teu 'eu te amo' que, por vezes, não respondo. A luz da manhã surge, resplandecente, a trazer meu sorriso mais iluminado depois de despenteados acordarmos e dormirmos para o mundo. Nascemos enfim, depois de tanta morte diária, nascemos enfim do compartilhar de nossas almas, nascemos de bruços, como o nascituro que se forma, no ventre, mergulhado no líquido da vida, quieto. O parto se dá toda vez que nos amamos. O parto se dá. Nos partimos e já tens a parte de mim que eu mais gosto. O parto acontece, mas dessa vez ao invés do choro ao nascer, o que se decifra são sorrisos bobos de crianças que amam, sem saber muito bem o que seja isso, inconsequentemente. Nascemos enfim do ninho do amor e ao longe

voamos no infinito do nosso olhar, cruzado nos ares
da liberdade.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Na garrafa do destilado, transparente a oportunidade de fazer com que o mundo não te sufoque apertando seu pescoço e te impedindo de respirar, numa morte agonizante, como é a de morrer a cada dia de existência. E é queimando que desce a sensação de liberdade, enfim.
Do porre, o coração batendo nas misérias. Revoltas compartilhadas. Entrega total aos instintos e o vômito quer expulsar a verdade que corrói.
Da ressaca, a sensação de que nada mudou. A cabeça girando na roda do mundo.
Você dorme na esperança de que a dor passe, pois ter os olhos abertos é enxergar também o sofrimento, por vezes, intrínseco, da existência. Acorda, meio a contragosto, o hálito cetônico na boca seca, a tontura que faz da sua cabeça o alicerce de uma casa, que mal feito, não consegue estruturá-la. Acorda e acordam-se também as lembranças confusas da noite anterior , as garrafas, os cigarros, as pessoas. Os motivos de tudo isto retornam sarcásticos rindo de você. Ninguém te ensinou que dormir não anula os fatos? Tenta abrir os olhos devagar, o amor ainda pode te salvar, menina, mas as mãos que te agarram o pescoço não são macias como as dele, não te acariciam e enfim, te apertam primeiro, sufocando-te: chamam-na realidade.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Indo para o trabalho de manhã, vejo o pássaro se equilibrar, sem dificuldade, no fio que se mantem esticado por dois postes.
Na calçada, as crianças brincam de atravessar a corda suspensa e entrelaçada em duas árvores. Elas abrem os braços na intenção de um maior equilíbrio. Algumas, mais habilidosas, conseguem abaixar e fazer manobras. Ah, o slackline!
Na praça, a noite, uma trupe se apresenta. Pintados, animam a todos enquanto se equilibram: na perna-de-pau, no monociclo; com bolinhas no ar. Agora tudo ao mesmo tempo.
Saindo do bar da esquina, um bêbado não mais se equilibra, tateando as paredes.
Casais tentam equilibrar os motivos da última briga com rapidez, para poderem se amar um pouco mais antes de dormir.
Navios se equilibram no mar. Os carros, no asfalto. O avião, no ar.
O mundo segue se equilibrando e eu, aflita, sigo tentando em vão equilibrar minha mente para assim poder reparar mais no mundo: ela, teimosa, insiste em só se manter pendida para um lado: o seu.
E é vendo o mundo se equilibrar, e te amando cada vez mais que me desequilibro e caio, enfim, aos seus pés.

domingo, 31 de março de 2013

A fumaça que sai dos veículos se mistura com a do meu cigarro e, juntas, dissolvem-se ao vento no peso da esperança de serem levadas até você. Querem levar até você o meu cheiro, enquanto fumo maços e maços desgostosos na sua espera, já sem noção do tempo.
Saio por ruas desconhecidas e desço avenidas que não sei o nome querendo que a sorte - até então, uma desconhecida que partiu - me faça te encontrar.
Te encontrar é dar de cara com o meu amor transformado em sabe-se lá o que: cheira agora a raiva, frustração, saudades e tantos outros mistos de sentimentos que já não sei os diferenciar e, ainda assim, imploro seu olhar.
Eu quero te olhar e rasgar todos os nossos poemas, esquecer nossas músicas, seu gosto, seu rosto olhar por uma última vez como quem encara o precipício antes de pular e indaga, confuso, o motivo de tudo isto e enquanto viajo, pela última vez no infinito do seu olhar, perceber que meus olhos não mentem e ao invés de te remeter às minhas angústias todas desses dias desleais, só reconhecer o amor genuíno: nos teus olhos um sorriso, no meu o amor que antes, transformado em raiva, agora se assemelha a alegria não mais disfarçada.
A fumaça dos veículos se mistura com a do meu cigarro na esperança de que o vento as leve até você o meu cheiro, mas meu pensamento, dissolvendo-se primeiro, já te encontrou.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

da sala de espera

Sentia-se numa eterna sala de espera, sem saber ao certo o que poderia ela estar esperando assim, tão incansavelmente quanto esperava-a num canto empoeirado a sua vontade de ser. E enquanto contava as horas que a separavam da chegada do momento, se via refletida, distorcida como sua alma, numa xícara já fria de café amargo. Distorcidas as paredes e o chão não mais plano, viu-se tomada por uma dor causada por cada membro que insistia em não querer mais existir, como se amputados fossem. Os dedos da mão esquerda afrouxam-se fazendo com que a xícara esparrame-se pelo chão, como ela até então estava, a xícara agora também quebrara-se, assemelhando-se à ela, pedaço por pedaço cortante. O relógio, já fraco, percebera só agora, insiste em não fazer seus ponteiros moverem-se e pesa no prego enferrujado que o segura inutilmente. Os dedos da mão direita continuam a manter a brasa do cigarro por entre eles, que assim como sua vida, queima sem ser notada e grita para que a traguem e soltem sua fumaça aos quatro ventos, mas ela continua ali, onde o tempo já não pode ser contado pelo relógio: a assemelhar-se cada vez mais com cada móvel, numa eterna sala de espera.

(Morria pela segunda vez no dia, nesse instante.)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

memorial

Na parede do meu quarto, colo desenhos que eu pintava por volta dos onze anos de idade para não deixar-me esquecer de quem já fui.
No guarda-roupa, num canto embaixo de todas as roupas, deixo as blusinhas que aprendi a costurar no overloque por volta dos meus doze anos, nunca mais voltaria a tecer algo, além de alguns textos de versos pobres que dizem-me soar tristes mesmo quando já não me dou conta do que possa ou não significar a melancolia.
O Piazzolla insiste em me machucar com Soledad, várias vezes ao dia.
A janela do meu quarto está aberta a fim de ouvir o som da chuva, mas o vento não entra.
Volto para a parede, preciso agora colar os folhetos dos protestos pacíficos que já participei, que é pra contrastar com essa anestesia que trago agora, a arrastar juntamente com a minha sombra por todos os lugares por onde passo.
Perto da janela, há algumas dezenas de medalhas, estas me chamam mais a atenção. Intocáveis durante anos, trazem consigo um misto de vitória e derrota. Brilho e abandono. Pó. Riscos. Assemelham-se tanto à mim, que pego-me enfeitiçada e alerta: não quero mais ser apenas uma memória. Página incompleta.
E na parede branca, aos poucos preenchida com desenhos, folhetos, fotos, textos e notas musicais, me vi, no canto inferior, a tapar a parte mal pintada, como uma memória, mas ao contrário dos desenhos, medalhas, blusinhas costuradas e textos, não houve quem me recordasse.


(Era carnaval e o incenso de fragrância desconhecida acabara-se. As cinzas dele, não.)


segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

às cegas

sou uma fruta estranha, talvez aquela que recolhida antes do tempo, ainda verde, foi deixada na fruteira até amadurecer completamente e, por fim, acabou esquecida. Só será lembrada quando começar a cheirar mal. Talvez alguns frutos tenham sido feitos para nunca serem provados, se assemelham aqueles que amadurecidos demais caem da árvore-mãe e são recolhidos por uma vassoura, ou pelo tempo, ou pelos bichos, ou pela decomposição, pelo solo. Mas eu sou a fruta estranha da árvore que nunca vi, que não senti o cheiro, que não suguei e que acabou na espera da fruteira. E como pode-se saber o gosto do fruto sem mordê-lo e sem devorá-lo? Encrave seus dentes em mim enquanto amadureço, serena, na última repartição da fruteira, vendo as outras frutas irem desaparecendo, pouco a pouco, amadurecidas e embelezadas pelos agrotóxicos. Nada é verdadeiro. O que é ser verdadeiro afinal? Me prove. Me devore, não com os olhos, mas com o saciar da primeira mordida às cegas. Apalpe-me a fim de tentar descobrir com qual forma me assemelho e se preciso, depois de lambuzados, lamba os dedos para verdadeiramente descobrir meu gosto, mas por favor: não me recolha se não for para me engolir, inteira.