terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

cinza

Hoje é seu aniversário e está tudo tão cinza aqui, meu bem. A república está vazia e eu nunca mais ouvi o ronco da sua moto. Eu nunca te amei, você sabe. Mas eu realmente sinto falta do nosso conhaque ao pé da cama e dos nossos cigarros de palha. Nossas corridas na chuva e de esfregar as suas costas durante o banho. Nós dois, na cama. Eu chorando meus amores perdidos e você, os seus. Minha cólera, na sua, a sua, na minha. E ao final da noite, já bêbados demais, e já tendo toda a tristeza de amores que se vão, a gente se deitava, abraçados.
Na manhã seguinte, você e eu sabíamos o que nos restaria, sempre: o cheiro do perfume nas roupas, misturado com o de cigarro e então, nos tornaríamos, mais uma vez, as cinzas esquecidas no cinzeiro velho em cima da escrivaninha do quarto: o vento forte bate um dia, as cinzas se vão, mas ambos sabemos; ah, como a brasa daquele cigarro nos queimou e envolveu um dia! Me desculpe não te ligar, não responder suas mensagens, eu nunca tenho créditos, você sabe. Estou fumando o cigarro de palha que você me deu há tanto tempo atrás - você sabia que eu o guardaria- e bebendo conhaque, dessa vez, sozinha.Cansei desse lance todo de sermos a cólera um do outro: minha cólera sou eu.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Sentia-se como uma plantinha murcha, guardada para recordar.
Num movimento não-contido
distorcido
as mãos
desassossegadas
passeiam
o coração
ligeiro
bate num ritmo sincero
nas mãos
o suor
os pés
entrelaçados
no chão
as roupas
cama
desarrumada
lençóis
caídos
no corpo
a nudez
eu
você
um no outro
encaixe
entrega

Na escuridão do quarto eu me perco
não me acho mais
você não mora mais apenas em você:
tem um tanto enorme teu, aqui.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Dos relatos de um tirano

O sofá que você senta, fui eu quem comprei. A casa em que mora, fui em quem construiu. Até mesmo esses roxos no seu corpo fiz questão de marcar com a surra que te dei antes de ontem e ontem, que é pra ver se você se lembra de mim ao olhá-los.
Eu confesso: te segui com o carro vários dias quando desconfiei que você pudesse estar tendo algum relacionamento com aquele cara.
Faço questão que você leia essas linhas no escuro, afinal, sou eu quem paga a conta de luz. Pago a casa em que mora, a comida que engole e até mesmo o teto em que, nesse instante, choras indagando o porquê de tudo isso.
Sua mãe moldei quase completamente: é muito fácil completar algo ainda rascunhado, você sabe.
Não sou tirano, e se tranco as portas e levo as chaves quando saio é para proteger-te do mundo.
Você está sob o meu teto, sob o meu controle.
Não te disse? Comprei a tua liberdade a fim de que não a tenha e as chaves, a fim de que não saia de casa, para que assim fique perto de mim, para sempre, ainda que só existindo.

"São tempos difíceis para os sonhadores"

Vivemos menos
sonhamos mais
e na ânsia de realizar tantos sonhos
morremos cedo

arranco um pelo ou outro com a pinça a fim de sentir dor e assim ter a certeza de que ainda existo
meus remédios acabaram e eu não tenho dinheiro para comprar outro genérico
tenho escrito coisas tão assustadoramente verdadeiras - como a própria verdade o é - que por vezes nem mesmo releio-as

a insustentável leveza do ser
a insustentável leveza dos sonhos
a insustentável leveza da existência

dura, árdua, labuta diária, traga-me a tragos lentos

sento todo dia na beira do lago da cidade
lá? a Calcanhotto e a Legião, o cheiro da maconha ainda no ar, os quiosques vazios, as árvores agitadas, a água já inquieta, um bêbado já desacordado na grama
alguns pedem a latinha da minha cerveja para recolher e depois vender a fim de ter algum trocado para o pão da manhã seguinte
lá no Pinheirinho pessoas passam a não ter mais moradia
eu costumava residir em mim

"Some of these days you'll miss me, honey
Some of these days..."

esses são dias desleais.