terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Trancava tudo. O telefone. As portas. O banheiro. Havia uma bolsa fechada com doces trancados e as chaves que davam acesso ao portão da saída tinham sido levadas por ele.
Não havia para onde eu ir. Nunca houvera.
Mas na manhã, nada disso parecia me atingir.
Eu tinha meus livros, meus discos, meu velho violão e um jeito estranho de desenhar.Gostava de deitar em minha cama com as luzes apagadas enquanto sentia cada emoção sendo emitida nas músicas que ouvia.
Dezoito horas. DEZOITO HORAS!
Dei-me conta de que faltava apenas um minuto para às seis da tarde, quando era chegada a hora sagrada do dia em que me visitava a tristeza.
Era como se meu corpo,cabelo, braço, dedos já trêmulos, as paredes do meu quarto e cada cômodo soubessem que àquela hora uma tristeza desesperadora me abateria.
O ponteiro bateu dezoito horas.
Ouvi o ronco do carro. Ele chegara.
Minha música silenciara e sem dar-me conta deixei cair o lápis que antes segurava.
Ele entrou.
Tentei pensar que aquela hora passaria, que assim como o relógio cruel avisava às dezoito horas a chegada dele, seus ponteiros também seriam bondosos o bastante e anunciariam, dentro de algumas horas, o dia posterior. Onde ele estaria longe. Longe de mim, no trabalho, e eu provaria , como todos os dias, aquela falsa sensação de ser livre.
Mas agora dera a hora. As chaves que ele carregava - e que abriam quase, por assim dizer, cada canto da casa- estavam sendo manuseadas, devagar.
Eu podia ouvir o barulho de chave rodando fechadura adentro. Abrindo tudo. Me fechando. Me lembrando que a todas essas horas da manhã eu estivera sozinha em casa, com tudo trancado para que eu não tivesse acesso.
O barulho das chaves se batendo, uma a outra, parecia agora latejar dentro da minha cabeça. Lembrei-me, de súbito, que eu não conhecera a liberdade. Dentro. Fora de casa. Não possuía liberdade. Estava presa. Não cometera nenhum crime e, ainda assim, estava presa. Estava presa à essa existência mórbida, e de certa forma, não mais abstrata. Dei-me conta de que assim como ele, eu também existia.
Tomei um Dramin a fim de ter sono.
Me deitei, fechei rapidamente os olhos e na esperança de que as horas que sucederiam a manhã não demorassem a chegar, esperei o sono.
Não fiqueis triste, bem-querer
há flores desabrochando docemente nesse instante
ali no jardim de casa mesmo.
Pegue na minha mão levemente e venha comigo vê-las
te prometo a de lótus, tua favorita
guardo o perfume dela no meu pensamento
e tento exalar quando estiveres comigo

o perfume dela, tem o cheiro suave das tuas roupas
que reprovando qualquer amaciante desses das lojas
escolhe o cheiro natural das flores a impregnar-se
de alguma forma
em todas as peças que vestem-te

a notícia do jornal é triste
eu sei
jurei por mil vezes não deixá-la desanimar-me
há flores murchando a toda hora
mas agora
concentremo-nos na que desabrocha, sozinha
no jardim de casa
enquanto todos da casa
ocupados demais com afazeres diários
não a percebem

vem comigo
vamos contemplar a beleza
notória
ou invisível

da vida
da natureza
do ser e de ser
finalmente duas almas.
por onde andarás nessa noite de lua pálida e estrelas pouco visíveis?
por onde passeará a passos lentos o teu pensamento?
será que ele vaga por aquela noite monótona de domingo,
quando sentamos embriagadas pelo tédio somente para contemplar-nos?
estarás a essa hora
a passear pelo meu corpo
com o teu pensamento?

Dou um trago.

Trago demoradamente o cheiro do teu cabelo,
preto,
caído distraidamente nos teus ombros,
enquanto admiro a leveza com que eles passeiam ao vento

compro-te uma bebida,
pode ser a cerveja gelada do rapaz da esquina mesmo
contemplo a forma com que bebes a goles lentos
a minha cerveja já acabou

o nosso amor segue
silencioso
prefere o toque às palavras


prefiro você
matéria-viva
sacrifício doce
doença de minha alma

jogo fora a bituca do cigarro

aqui tudo continua intacto
decido dormir
não quero mais esses pensamentos


quero construir novas lembranças
meu amor

domingo, 1 de janeiro de 2012

Eu passei longos trinta minutos olhando para sua face enquanto ela, com a boca entreaberta e os olhos pequenos, mas cheios de amor, contemplavam a habilidade do menino ao folhear as páginas de um álbum antigo de fotografia, enquanto a criança tentava adivinhar quem seriam aquelas figuras tão distantes e irreais, das fotos pregadas no álbum.
Fechei, quase mecanicamente o Nabokov que lia, e tentei decifrar seu olhar maternal. Senti o reflexo do amor que seus olhos lançavam insaciavelmente à criança e tentei imaginá-los refletindo-o a mim.
Porque era eu a criança das fotografias estampadas no velho álbum, que hoje crescida, tentava incansavelmente relembrar qualquer mínimo momento da minha vida, no qual ela tivesse lançado a mim aquele mesmo olhar que agora lançava à criança.
Sim, eu era a criança da fotografia, mas era além de tudo, real e vasculhava agora detalhadamente meu passado na busca por qualquer sorriso, palavra de amor, ou abraço e outros carinhos que ela pudesse ter me lançado no passado, talvez quando eu tivesse a idade da criança (quem sabe?) como a via refletindo nos seus olhos, para a criança.
Não achei nenhuma memória a que creditasse esses carinhos, achei antes, memórias que por longos dezoito anos tentei afastar. Eu só havia visto o rancor nas chibatadas que levava, quase semanalmente e agora, eu descobrira em seus olhos o amor, ainda que não lançado para mim. Agora eu sabia. Eu via. Eu sorria. Eu chorava. Ela possuía amor. Ela estava, naquele instante, cheia de amor. E eu a olhava...